terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A inteligência em jogo

Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.131-140, mai./ago. 2005
A inteligência em jogo no contexto da educação física escolar 1
João Batista Freire
Adonis Marcos Lisboa
UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina
Resumo: esta pesquisa tem por objetivo investigar a mobilização da inteligência em circunstâncias diversas, tanto em
situações lúdicas como fora delas. Envolvemos sujeitos entre nove e 12 anos, alunos de Ensino Fundamental, que
realizaram, em aula de Educação Física, duas versões da brincadeira Nunca Três. Em seguida tiveram que responder
questões, com tempo ilimitado, sobre as atitudes dos jogadores durante a brincadeira. Isso foi comparado com uma
situação em que respondiam perguntas sobre tabuada, em dois momentos: com tempo limitado a um segundo por
pergunta e sem tempo limitado. Este estudo foi fundamentado, principalmente, na obra de Jean Piaget sobre
epistemologia genética. Recorremos ao método de observação participante e análise de conteúdo, integrando-os a
análises quantitativas. Os resultados obtidos levam-nos à suposição de que a inteligência é um atributo circunstancial,
isto é, capaz de, alteradas as circunstâncias, promover adaptações incessantes, dentro de certos limites.
Palavras-chave: Inteligência. Educação física. Jogo.
The intelligence at stake on the school physical education context
Abstract: This research has as a main goal to investigate the mobilization of the intelligence in many circumstances,
even in ludic circumstances or out of it. We involved subjects between nine and twelve years old, students from the
elementary school, who carried out in the Physical Education class two versions of the game Never Three. After that
they had to answer questions with unlimited time about the attitude of the players during the game. This was compared
with one situation in which they answered questions about mathematics, in two moments: with limited time of one
second and unlimited time. This study was founded, mainly, at Jean Piaget work about genetic epistemology. We
appealed to the participant observation method and content analyze, integrating each one to the quantitative analyzes.
The obtained results led us to suppose that the intelligence is a circumstantial attribute, which means that it is able to,
even under changed circumstances, promote incessantly adaptations within some limits.
Key Words: Intelligence. Physical education. Game.
J. B. Freire & A. M. Lisboa
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fenômeno modelizado é suscetível de transitar.
Trata-se de reconhecer os atos, as ações, os
funcionamentos, os comportamentos – pelos
quais se manifestarão a atividade e a evolução
desse fenômeno.
Comecemos pelo mais popular parâmetro de
aferição da inteligência de todos os tempos: o quociente
de inteligência, mais conhecido como QI. Em 1904,
Alfred Binet foi contratado pelo governo francês para
realizar um estudo bastante objetivo: identificar
crianças com fraco desempenho escolar e que, portanto,
necessitassem de educação especial. Após alguns anos
de estudo, finalmente Binet chegou a uma escala que
aferia o nível de inteligência das crianças, de acordo
com as soluções que encontravam para as tarefas que
lhes eram apresentadas. Essas tarefas eram escalonadas
por idades, isto é, as mais simples correspondiam a
idades menores, e assim por diante. As crianças testadas
deveriam realizar as tarefas correspondentes às menores
idades, em seguida as próximas, até que não
conseguissem mais solucionar os problemas.
Comentando a técnica de Binet, Gould (1991, p.152)
escreveu:
A idade associada às últimas tarefas realizadas pelas
crianças tornava-se assim a sua “idade mental”, e seu
nível intelectual geral era calculado subtraindo-se essa
idade mental de sua verdadeira idade cronológica. As
crianças cujas idades mentais fossem bastante
inferiores às suas respectivas idades cronológicas
podiam ser selecionadas para os programas de
educação especial, cumprindo-se assim o encargo que
Binet havia recebido do ministério.
Pouco mais tarde, W. Stern acrescentou algo que
definiria, finalmente, o tão famoso QI. Segundo ele, a
idade mental deveria ser dividida pela idade
cronológica, e não subtraída.
Alfred Binet advertiu que os testes de QI não
aferiam a inteligência, não passando de um guia geral
para identificar problemas escolares. Porém, com o
tempo, especialmente quando se popularizaram nos
Estados Unidos, os números conseguidos nos testes
passaram a ser aceitos como medidas de inteligência.
Escolas, empresas, instituições as mais diversas,
dedicaram-se a classificar pessoas de acordo com os
testes, estigmatizando as que obtinham resultados
fracos e superestimando os mais fortes.
Em oposição diametral às idéias de base dos testes
de inteligência, na década de 1990 ganharam enorme
destaque no Brasil os trabalhos de Howard Gardner
sobre as inteligências múltiplas. Ao contrário do caráter
estigmatizador dos testes de QI e das idéias inatistas, os
estudos de Gardner apontavam para uma possibilidade
muito mais plástica e rica desse atributo humano, a
inteligência, cuja função é dar conta dos problemas. Ele
seguiu uma trilha que culminou por definir diversas
categorias de inteligência. Inicialmente eram sete as
categorias definidas por esse autor, mais tarde
acrescidas de outra. Entre as possibilidades humanas de
inteligência estavam: a corporal/cinestésica, a
interpessoal, a intrapessoal, a naturalista, a lingüística, a
musical, a lógico-matemática e a espacial.
Herdeiro das idéias de Piaget, Gardner difere do
pesquisador suíço por admitir que os processos
psicológicos podem ter relativa independência entre si.
Assim, alguém que demonstre certa dificuldade quanto
a problemas de ordem lógico-matemática, poderia sairse
bem em questões interpessoais, etc.
É notável o avanço, do ponto de vista democrático,
das idéias do professor de Harvard, comparativamente
ao que resultou dos testes de QI. Porém, de alguma
maneira, Gardner trata da inteligência como
inteligências, e as trata como circunscritas, mesmo
admitindo que não funcionam isoladamente, mas,
geralmente, em conjunto umas em relação às outras
(GARDNER, 1995).
Predecessor de pesquisadores como Gardner, e
ferrenho opositor, tanto das idéias inatistas como das
comportamentalistas, Jean Piaget nasceu na Suíça e, de
formação, era biólogo, e não psicólogo, como muitos
acreditam. Desde criança pesquisava. Chamava-lhe a
atenção, já na adolescência, acima de tudo, o
comportamento. Diante de problemas, a inteligência,
um atributo geral humano, segundo ele, mobilizava-se
para permitir ao sujeito retornar ao estado de equilíbrio
rompido diante das dificuldades.
Para compreender a problemática da inteligência,
Piaget recorria a observações de crianças,
principalmente, e adolescentes, envolvidos em situações
geradoras de problemas. Como é bastante comum em
estudos na área da psicologia, ele definia uma certa
configuração da inteligência diante do comportamento
da criança face a um problema específico. De maneira
geral, definiu que a inteligência segue um curso
temporal, a partir de um estádio denominado por ele de
sensório-motor, superado pelo estádio pré-operatório,
que integra o anterior, em seguida o operatório concreto
e, finalmente, o hipotético-dedutivo ou formal. Cada
nova forma de inteligência integra todas as anteriores.
Porém, é a partir das idéias, bastante atuais, sobre
complexidade, que o fenômeno da inteligência ganha
delineamentos mais de acordo com suas propriedades,
isto é, um mecanismo móvel, imprevisível,
extremamente versátil, ao sabor das circunstâncias,
podendo dar conta ou não daquilo que confronta o
indivíduo, que o afeta desequilibrando-o, na
dependência dos recursos à disposição dessa
inteligência.
Durante boa parte do Século XX, e ainda hoje,
animado pelas idéias do pensador suíço Jean Piaget, de
P. Weiss, Von Bertalanffy, H. A. Simon, entre outros,
Edgar Morin lança suas idéias a respeito da inteligência
(não só a humana) e o que ela significa a partir da teoria
da complexidade. Para Morin (p.166):
A inteligência é uma qualidade anterior e
exterior ao pensamento humano, se definirmos a
inteligência como aptidão para pensar, tratar,
A inteligência em jogo
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resolver problemas em situações de
complexidade (multiplicidade das informações,
encadeamento das inter-retroações, variações na
situação, incertezas e áleas). Com efeito,
pudemos constatar inteligência não só nos
animais dotados de um aparelho neurocerebral
mas mesmo no reino vegetal.
Ou seja, não se trata apenas de um recurso
humano para tornar inteligíveis nossos mundos interior
e exterior, mas um recurso de vida, para todos os vivos.
Ainda, segundo Morin (p.167):
A inteligência humana tem de enfrentar, não já
apenas um meio, mas o mundo, que já não é
apenas biofísico, mas também psíquico, cultural,
social, histórico. Assim, se há herança da
inteligência animal, mamífera, primática no
homem, há recomeço da inteligência ao nível do
espírito, da cultura e da sociedade.
Para aquele pensador francês, a inteligência é
sempre estratégica e, em certas circunstâncias, arte.
Sendo arte, e é nesse ponto que queremos chegar, [...] a
arte da inteligência não saberia obedecer a receitas ou
programas de realização. Como toda arte, tem de
combinar de maneira feliz qualidades muito numerosas
e diversas, algumas das quais são antinômicas[...]
(MORIN, p.168). Edgar Morin, concluindo seu
discurso sobre a inteligência, afirma ainda:
A natureza complexa da inteligência ultrapassa
toda a apreensão pelos quocientes intelectuais. A
inteligência não é apenas o que medem os testes
da inteligência, é também o que lhes escapa. As
medidas de inteligência só podem ter um valor
parcial, fragmentário, local, relativo... A
pretensão de tratar a inteligência como objeto
reduzível aos seus constituintes é pouco
inteligente... A arte da inteligência é também
saber escolher inteligentemente os meios
inteligentes para tratar especificamente uma
dada situação (p. 169).
Nessa mesma linha, e precedendo Morin, Piaget
(1985) afirmou, quando escreveu uma de suas últimas
obras, “O possível e o necessário” ( que a inteligência
humana, diante de problemas, dispõe para o sujeito um
leque de possibilidades. Que esse leque seja amplo,
diversificado e rico (e aí se trata de uma questão
pedagógica), e que o sujeito saiba escolher
inteligentemente a melhor opção para cada caso.
Claro que o assunto é extenso e excederia em muito,
se fôssemos inventariar amplamente os trabalhos de
investigação sobre a inteligência humana, os limites
deste artigo. Basta, portanto, que o arrazoado de idéias
tecido até aqui conduza os leitores à idéia de que
realizamos esforços para demonstrar, com dados
empíricos, o quanto a inteligência é circunstancial,
móvel, imprevisível, complexa. Trata-se, em nosso
entender, de um anúncio alvissareiro, já que, diante
disso, não podemos catalogar pessoas como sendo isto
ou aquilo, antecipadamente, mas, ao sabor das
circunstâncias e por questões históricas, poderão ser
qualquer coisa. O talento e as chances resultam de
tramas absurdamente complexas, que escapam a
qualquer tentativa de descrição exata.
Neste trabalho, portanto, a observação de crianças
resolvendo seus problemas, em situações bastante
diversas, mostra como a inteligência funciona a
contento, ou não, dependendo da variabilidade das
circunstâncias. Afinal, como afirmava Ortega Y Gasset,
“Eu sou eu e as minhas circunstâncias” Nada do que a
gente afirme ou faça neste instante, prevê exatamente o
que o sucederá.
Objetivo geral
O presente estudo teve como objetivo investigar a
atuação da inteligência em contextos de jogos, sempre
que as solicitações para resolver problemas forem
urgentes e emergenciais, ou seja, quando o tempo para
solução dos problemas é muito reduzido,
comparativamente a situações em que os problemas
podem ser resolvidos sem prazos determinados e fora
de situações lúdicas.
Método
Este estudo integra um projeto amplo de pesquisas
sobre a mobilização da inteligência em diferentes
circunstâncias. Um dos produtos desse projeto foi a
dissertação de mestrado – A inteligência em jogo:
estudo sobre a solução de problemas no contexto do
jogo (LISBOA, 2005).
Analisar um fenômeno complexo como a
inteligência, em situações igualmente complexas como
as de jogo, exige um método de pesquisa que privilegie
essa circunstância. Neste sentido, combinamos, neste
estudo, modalidades qualitativas de pesquisa, como a
Observação Participante e Análise de Conteúdo, além
de restritas análises quantitativas, uma vez que os
conteúdos, antes de analisados, foram quantificados e
apresentados em gráficos.
A parte experimental do trabalho foi constituída
pela realização, por parte dos sujeitos, de duas versões
da brincadeira Nunca Três, isto é, uma variação do
tradicional jogo de Pega-Pega. Durante esse jogo os
jogadores devem formar duplas, fixando-se, cada uma
delas, em um lugar qualquer dentro de uma quadra.
Entre os jogadores, um será escolhido para ser o
pegador e outro para ser o fugitivo, inicialmente. Dado
um sinal, na primeira versão da brincadeira, parte o
pegador na captura do fugitivo que, para se salvar, tem
que pegar na mão do componente de uma das duplas.
Nesse momento, o outro componente dessa dupla
assume o papel de fugitivo. Na segunda versão, no
momento em que o fugitivo segura na mão do
componente de uma das duplas, o outro da dupla
transforma-se em pegador, ao passo que o que até então
era o pegador, vira imediatamente fugitivo.
As brincadeiras foram filmadas em freqüência Super
VHS, com câmeras profissionais marca Panasonic, com
resolução de filmagem de 30 quadros por segundo, o
que permitiu, em análises posteriores, aferir o tempo
J. B. Freire & A. M. Lisboa
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gasto pelos sujeitos para resolver os problemas surgidos
durante a brincadeira. As filmagens também serviram
para assegurar parte das análises, pois as imagens dos
sujeitos realizando suas ações, isto é, o modo como
procediam durante as brincadeiras, para dar conta dos
problemas por elas colocados, foram cuidadosamente
descritas.
Após as práticas lúdicas, os alunos eram convidados
a responder perguntas, durante uma entrevista, sobre a
atuação dos jogadores na brincadeira Nunca Três. As
perguntas eram as seguintes:
P1) na primeira versão do jogo, se você estiver
numa dupla e o fugitivo der a mão para seu
companheiro, você foge ou pega? A resposta correta é:
foge;
P2) na segunda versão do jogo, se você estiver
numa dupla e o fugitivo der a mão para seu
companheiro, você foge ou pega? A resposta correta é:
pega;
P3) na segunda versão do jogo, se você estiver
pegando, quando o fugitivo der a mão para alguém de
alguma dupla, você continua como pegador ou se
transforma em fugitivo? A resposta correta é: fugitivo.
Além disso, havia um questionário sobre tabuada.
Na primeira etapa os sujeitos responderam verbalmente
a seis perguntas, na seguinte ordem: 6 x 9, 7 x 8, 8 x 9,
9 x 7, 9 x 8, 8 x 7. Tinham apenas um segundo para
responder a cada questão. Findo o prazo, qualquer que
fosse a resposta e mesmo na sua ausência, o
pesquisador passava à próxima. Após cada rodada
completa com as seis questões, passava-se a uma
segunda rodada, e assim por diante, até completar cinco
delas. Havia ainda uma sexta rodada, porém, esta era
realizada sem tempo limitado, isto é, os sujeitos tinham
o tempo que quisessem para responder às questões,
utilizando, inclusive, materiais de apoio como lápis,
borracha e papel.
O grupo de sujeitos era constituído de 12 alunos e 6
alunas da quarta série do Ensino Fundamental, com
idades entre nove e 12 anos, de uma escola da rede
oficial de ensino do município de Brusque em Santa
Catarina.
A parte experimental deste trabalho foi realizada
numa quadra esportiva da escola, limitado o espaço a
meia quadra de voleibol. Um dos pesquisadores era o
professor habitual dos sujeitos desta pesquisa,
participando com eles de todas as aulas de Educação
Física da escola onde foram colhidos os dados para esta
pesquisa, o que caracteriza a modalidade Observação
Participante desta investigação.
Os sujeitos da pesquisa não possuíam experiências
anteriores, em aulas de Educação Física, com a
brincadeira realizada neste estudo. Sem dúvida,
possuíam experiências com brincadeiras semelhantes de
pega-pega.
Análise e discussão dos resultados
Figura 1. Acertos e erros na brincadeira Nunca Três,
primeira versão
À esquerda da Figura 1 podemos observar, em
disposição vertical, o número de ações possível. Como
o tempo total de duração do jogo foi de quatro minutos,
em cada um dos intervalos de um minuto não
aconteceu, em nenhum deles, um número superior a 10
ações (tanto de ações certas quanto de ações erradas).
Ao longo dos quatro minutos, 34 ações foram
realizadas, como se pode observar na disposição
horizontal das linhas indicativas de acerto/acerto, isto é,
AA, ou de acerto/erro, ou seja, AE (acerto do pegador,
erro do outro da dupla que tinha que se tornar fugitivo).
A linha superior é indicativa dos acertos absolutos,
aquelas ações em que, tanto o fugitivo quanto o
pegador correram na direção certa. A linha inferior
indica os casos em que, ou o fugitivo, ou o pegador,
erraram a direção da corrida na hora de cumprir os
objetivos do jogo. Lembramos que, nessa brincadeira,
havia um pegador perseguindo um fugitivo. Os demais
jogadores formavam duplas, de mãos dadas,
posicionadas dentro da quadra. Para se safar, o fugitivo
teria que dar a mão a algum jogador de uma das duplas;
nesse momento, o outro da dupla deveria assumir seu
lugar, tornando-se fugitivo. Portanto, o êxito consistia,
para o outro da dupla, em correr na mesma direção que
seu antecessor, isto é, o fugitivo, que se safou dando a
mão para seu colega de dupla. Ter êxito, para aquele
que até então era o pegador, significava manter a
direção da corrida, perseguindo o novo pegador. O
problema consistia, portanto, em apenas não mudar a
direção da corrida, questão relativamente simples, como
se pode notar nos resultados obtidos pelos sujeitos, ou
seja, um número mínimo de erros.
O tempo limite de quatro minutos foi determinado
pelo êxito dos sujeitos. Não precisaram brincar mais
que quatro minutos para demonstrar que já haviam
resolvido os problemas da brincadeira. A partir desse
tempo de jogo, não ocorriam mais erros de qualquer
natureza. Portanto, esgotaram-se os motivos para
prosseguir o jogo.
NUNCA TRÊS - 1a. Etapa
-10 0
10
1 2 3 4
Tempo de
Jogo (min.)
Ações
(Quant.)
Acerto/Acerto
Acerto/Erro
A inteligência em jogo
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Durante todos os quatro minutos de brincadeira, 34
ações foram realizadas pelos sujeitos. Delas, apenas
quatro foram classificadas como AE, isto é, com algum
erro, e 30 delas classificadas como AA, ou seja, sem
nenhum erro. Portanto, nessa primeira versão da
brincadeira Nunca Três, quase 90% das ações foram
totalmente corretas. Para o nível de possibilidades de
solução de problemas dos sujeitos desta pesquisa, essa
primeira versão da brincadeira não apresentou
problemas suficientemente complexos para criar
constrangimentos e impedir o êxito. De modo que a
circunstância desse momento, no que toca à
inteligência, era bem pouco solicitadora. Fossem outros
os sujeitos, com outras idades, outras histórias, etc., os
resultados poderiam ser diferentes.
Figura 2. Tempo gasto pelos sujeitos para cumprir as
tarefas
Tomamos como referência para aferir o tempo gasto
pelos sujeitos para cumprir suas tarefas, o intervalo
entre o ato de o fugitivo dar a mão para alguém da
dupla e a reação do outro sujeito da dupla, que deveria
assumir o papel de fugitivo, isto é, correr na mesma
direção que o fugitivo anterior. O problema a resolver
era, portanto, correr na direção certa, escapando do
pegador.
A Figura 2 mostra que o tempo para solução do
problema apresentado durante o jogo foi bastante curto,
aproximadamente de 0,5 seg. Ou seja, certamente a
questão central dessa ação, que era coordenar
adequadamente as ações de reagir e correr na direção
certa, era bastante vizinha de outras anteriormente
experimentadas pelos sujeitos. As experiências
anteriores dos sujeitos da pesquisa incluíam recursos
que, tornando-se possíveis para a ação atual, permitiram
resolver rapidamente os problemas encontrados.
Registrar o tempo gasto pelos sujeitos para realizar
as ações solicitadas na brincadeira Nunca Três teve a
utilidade de demonstrar a exigüidade de prazo para
resolver os problemas gerados a cada ação. Ou seja, em
jogos dessa natureza o objetivo maior a ser alcançado
pelos jogadores é cumprir, em tempo mínimo, as metas
fixadas pelas regras pré-definidas. Caracteriza-se,
assim, uma situação emergencial. Os dados necessários
à solução do problema a serem reunidos em conjunto
são muitos e complexos, bastante semelhantes a outras
situações, porém, neste caso, com prazo não superior a
meio segundo. O componente de pressão, que torna
essa ação diferente, é o tempo. A pergunta conseqüente,
nesse caso é: a alteração de um dos dados do conjunto
(o tempo) mobiliza uma outra inteligência? Ou apenas
demonstra a plasticidade, a extrema complexidade da
inteligência humana?
Figura 3. Acertos e erros na brincadeira Nunca Três,
segunda versão
Tal qual na Figura 2, à esquerda, em disposição
vertical, apresentamos os números indicativos de ações
realizadas. Não ocorreram ações de qualquer natureza
em número superior a cinco em cada intervalo de um
minuto. Porém, foram tantos os casos de erros,
comparativamente à primeira versão da brincadeira
Nunca Três, que decidimos detalhá-los, acrescentando,
neste caso, aos acertos absolutos (AA) e acertos
parciais (AE), os erros absolutos (EE) e os erros
parciais (EA) sendo que, estes dois últimos, não
ocorreram na primeira versão. Por EA entendemos os
casos em que o sujeito que atuava como pegador, tendo
o fugitivo se safado pegando na mão de alguém de uma
das duplas, continuava perseguindo em vez de se tornar
fugitivo. Os casos de EE, ou seja, duplo erro, traduziam
situações em que, tanto o atual pegador, como o outro
da dupla, trocavam seus papéis (em vez de, o primeiro
tornar-se fugitivo e o segundo pegador, faziam o
contrário).
NUNCA TRÊS - 2a. Etapa
Tempo para Tomada de
decisão
0,00
1,00
1 2 3 4 5 6 7 8 9 1
Tempo de Jogo (min.)
Temp
o para
Decisã
Média Geral
Figura 4. Tempo gasto pelos sujeitos para cumprir as
tarefas
O tempo médio gasto pelos sujeitos para tomar
decisões quanto aos problemas surgidos foi pouco
superior a meio segundo, portanto, muito próximo
àquele consumido quando da primeira versão da
brincadeira.
NUNCA TRÊS - 1a. Etapa
Tempo para Tomada de
decisão
01,,,,,,001234567890
1 2 3 4
Tempo de Jogo (min.)
Tempo
para
Decisão
Média Geral
NUNCA TRÊS - 2a. Etapa
Tempo para Tomada de
decisão
0,00
1,00
1 2 3 4 5 6 7 8 9 1
Tempo de Jogo (min.)
Tempo
para
Decisã
Média Geral
J. B. Freire & A. M. Lisboa
136 Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.131-140, mai./ago. 2005
Aferir o tempo médio gasto pelos sujeitos para dar
conta da tarefa proposta em ambas as versões da
brincadeira Nunca Três serviu para demonstrar a
exigüidade de prazo que possuem os praticantes para
resolver problemas quando as situações são
emergenciais como no caso estudado. Na primeira
versão, tratando-se de um problema relativamente
simples, o tempo médio foi de meio segundo
aproximadamente, ao passo que na segunda versão,
nitidamente mais complexa, o tempo médio foi pouco
superior.
Temos, quanto à questão do tempo, dois problemas
diferentes: na primeira versão, bastava ao pegador
prosseguir sua corrida sem alterar a direção. A
incumbência de outro da dupla era, a partir de uma
posição parada, tomar o rumo certo, portanto, para ele o
problema era mais difícil. Daí tomarmos a decisão de
aferir o tempo a partir de sua iniciativa.
Na segunda versão do Nunca Três o problema
também era muito complexo para o pegador; ele tinha
que inverter subitamente a direção de sua corrida. O
outro da dupla, para solucionar o problema, tinha que
decidir correr assumindo o papel de perseguidor.
Ambos os papéis tinham, além disso, um problema
adicional: minutos antes suas corridas (na primeira
versão) obedeciam direções opostas à situação atual.
Coordenações suficientemente adaptadas na versão
primeira eram rompidas, criando problemas adicionais
para ambos os protagonistas. Por isso tomamos a
decisão de aferir o tempo referenciados pela ação do
pegador, isto é, aquele que perseguia antes de o fugitivo
pegar na mão de alguém de uma dupla. Aferir o tempo
de ambos tornaria por demais demorados os trabalhos
de análise nesta pesquisa e, certamente, não mudaria
praticamente nada.
Os dados recolhidos mostram claramente as
dificuldades de adaptação para os sujeitos na segunda
versão. A aferição do tempo serviu, afinal, para mostrar
a emergência da situação, isto é, para evidenciar que se
tratava de situações nas quais o tempo para solução dos
problemas era mínimo. Os sujeitos agiam sob rigorosa
pressão temporal.
Portanto, a análise que se fará a seguir tomará como
referência esse dado, isto é, o problema, para os
sujeitos, de terem que tomar decisões acertadas em
prazos extremamente curtos. Como veremos em
análises posteriores, em situações semelhantes a essas,
mas em outros contextos, com prazos aumentados, tanto
problemas como soluções mobilizam a inteligência dos
sujeitos em outras configurações.
Passemos agora às versões da brincadeira Nunca
Três e seus casos exemplares, mais especificamente
como aparecem nas Figuras 1 e 3.
Na primeira versão, pouquíssimos erros. O que isso
significa? Significa que houve uma rápida adaptação
dos sujeitos à situação. As curvas de acerto e erro
mostram claramente que não havia muito o que
aprender, pois as ações acertadas ocorreram em grande
número desde o início, mantendo-se até o final.
Certamente as ações requeridas eram bastante
familiares aos sujeitos. Para compreender o que se
passou sugerimos especial atenção ao que diz Piaget
(1985, p.7) a respeito das soluções de problemas, entre
os quais podemos incluir as que foram descritas nesta
pesquisa: “É evidente, com efeito, que a atualização de
uma ação ou de uma idéia pressupõe que antes de tudo
elas tenham sido tornadas “possíveis” e a observação
mostra que o nascimento de um possível geralmente
provoca outros” .
Ora, diante do problema, o outro da dupla
(relembrando: o fugitivo, para escapar, dava a mão para
alguém de uma das duplas. O outro da dupla tinha que
virar fugitivo) precisava fugir. Isso é muito semelhante
a brincadeiras similares de pega-pega. Além disso,
bastava manter a direção que já havia observado nos
colegas, e aquela definida pelo pegador. Antes,
portanto, de tomar essa iniciativa, tornar isso possível
era relativamente simples. O sujeito, num processo
geralmente inconsciente, dispunha os possíveis para tal
ação e recorria a um deles para solucionar o problema.
Para uma criança dessa idade, perseguir e fugir implica
em recorrer a uma ampla história anterior de possíveis
entre os quais escolher o melhor para cada caso. Como
a solução era simples, bastava decidir, o pegador
continuar perseguindo, o outro da dupla tornar-se
fugitivo. Destacamos que, no exíguo prazo de meio
segundo, não daria para o sujeito pensar tudo isso antes
de agir. Portanto, trata-se de um processo onde o
objetivo da ação é consciente, mas os meios, incluindo
aí a disposição de possíveis, é inconsciente. Em
seguida ocorre a constatação, isto é, se deu certo ou
errado. Dando errado, poderá haver mudanças e
correções na próxima ação. Dando certo, basta manter
os mesmos mecanismos.
Piaget (1985, p.9) a respeito disso comentou:
Assim, todo indivíduo encontra-se na posse de
dois grandes sistemas cognitivos, aliás,
complementares: o sistema presentativo fechado,
de esquemas e estruturas estáveis, que serve
essencialmente para “compreender” o real, e o
sistema de procedimento, em mobilidade
contínua, que serve para “ter êxito”, para
satisfazer necessidades portanto, através de
invenções ou transferências de processos.
Num certo momento da segunda versão da
brincadeira Nunca Três, parece que nada dará certo.
Habituados aos procedimentos da primeira versão, a
impressão que fica é que a insistência neles é inevitável.
Porém, esses esquemas (que Piaget chamaria de
esquemas de procedimentos) são ineficazes na situação
atual, porque insuficientes. É como se, na segunda
versão houvesse uma abertura muito estreita, pela qual
jamais passariam os procedimentos anteriores. O
interessante é que, à medida que as experiências se
A inteligência em jogo
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sucedem, ou a abertura vai se alargando ou os
mecanismos vão se refinando e, finalmente, há uma
abertura adequada para que o sujeito tenha acesso ao
problema, e acabe por resolvê-lo. É preciso sempre
lembrar que há um comportamento decisivo na situação
lúdica: por mais complexo que seja o problema, se não
for impossível, a gratificação por resolvê-lo é imensa.
As crianças vivem verdadeiros estados de euforia após
concluir um jogo com êxito.
De acordo com os dados apresentados na Figura 3,
há uma nítida tendência para diminuição dos erros e
aumento dos acertos. Isto é, ao longo do tempo, houve
aprendizagem, portanto, adaptação. Ora, quando Piaget
insiste no comportamento como motor da evolução
(1977), na perspectiva humana, entra em cena a
pedagogia ,que, para nós, deve ostentar o mesmo
estatuto científico que a psicologia quanto a essa
questão do desenvolvimento.
Dias após a realização das duas versões da
brincadeira Nunca Três, os sujeitos foram entrevistados
por nós a respeito dessas atividades. Tinham que
responder questões que correspondiam ao que fizeram
na prática dos jogos2. A figura a seguir mostra as
respostas dos sujeitos às três perguntas que lhes foram
feitas durante as entrevistas.
Figura 5 – Respostas dos sujeitos durante as entrevistas
Em termos percentuais, a Figura 5 demonstra que
houve cem por cento de acertos durante as entrevistas.
A primeira pergunta (P1) referia-se à primeira versão da
brincadeira; as duas próximas perguntas (P2 e P3)
referiam-se à segunda versão. Os sujeitos tinham que,
diante do professor, responder sobre as atitudes dos
jogadores quando o fugitivo pegava na mão de alguém
de uma das duplas.
Comparativamente à realização prática da
brincadeira, a diferença de desempenho foi enorme,
principalmente quanto à segunda versão. Ora, isso deve
ser creditado à diferença de circunstância. No primeiro
caso, isto é, na prática da brincadeira, a realização se
dava em uma quadra de Educação Física, tratava-se de
uma brincadeira de pega-pega, havia regras definidas,
objetivos traçados, etc. Acima de tudo, especialmente
2 Ver descrição das entrevistas no tópico sobre o Método.
na segunda versão do jogo, não resolver o problema
significava, para o pegador (que tinha que virar
fugitivo), ser pego e, para o outro da dupla (que deveria
virar pegador), não pegar o colega. Porém, o prazo que
possuíam para resolver o problema era somente o
tempo que o pegador gastava para alcançar o fugitivo,
isto é, menor que um segundo (pegador e fugitivos
corriam muito próximos um do outro). Na circunstância
da brincadeira na quadra, muitos são os elementos
diferenciadores do contexto da entrevista. Não resolver
o problema na prática motora tinha uma grave
conseqüência: ser capturado. Não resolver o problema
na entrevista não tinha qualquer conseqüência. Portanto
a pressão sobre o sujeito era bem diferente entre um
caso e outro. Entre as inúmeras diferenças existentes,
talvez a mais forte de todas seja a limitação de tempo
para resolver o problema. A emergência da situação
prática, não existente na entrevista certamente
mobilizava a inteligência dos sujeitos de maneira
bastante diferenciada. Porém, mesmo diante das
maiores dificuldades da prática, o ambiente lúdico desta
produzia enorme empenho nos jogadores.
Durante as entrevistas, diante de perguntas verbais,
os sujeitos tiveram tempo ilimitado para refletir sobre
os problemas e os resolveram a contento. Nenhum erro
foi cometido. Portanto, fracassar em uma circunstância
não significa fracassar em outra. Não há uma relação
direta entre elas. Ser inteligente não é ser inteligente
para tudo. Os sujeitos de nossa pesquisa começaram a
segunda versão do Nunca Três fracassando. Precisaram
de repetidas experiências para obter êxito. Os erros só
começaram a diminuir significativamente, na segunda
versão do jogo, a partir do quinto minuto de práticas. O
que ocorreu? Não eram inteligentes no começo e
tornaram-se inteligentes depois? Não é assim tão
simples. A inteligência é circunstancial. Ela depende de
uma história de experiências anteriores e precisa, por
mais plástica que seja, de um tempo para adaptação.
Novos possíveis precisam ser construídos diante dos
fracassos, e isso é muito profícuo para a inteligência.
Se prosseguíssemos alterando as circunstâncias, as
exigências quanto ao funcionamento da inteligência
variariam. Foi o que fizemos, solicitando aos sujeitos
que respondessem a algumas questões sobre tabuada.
Com limite de tempo fixado em um segundo para
responder cada questão, a quantidade de erros foi
enorme. Porém, quando o prazo foi ilimitado, quase
todos os sujeitos responderam corretamente. Há que se
observar que nessa primeira etapa, quando havia apenas
um segundo para cada resposta, a cada rodada de
perguntas aumentava o número de acertos, seguindo
uma tendência geral de aprendizagem já apresentada na
prática da segunda versão da brincadeira Nunca Três.
O número de acertos durante a prática da
brincadeira foi, sem dúvida, maior que durante o
questionário sobre Tabuada. Porém, o número de
0
20
40
60
80
100
Porcentag
em de
Acertos
P 1 P 2 P 3
Perguntas
NUNCA TRÊS - Questionário
Acerto
Erro
J. B. Freire & A. M. Lisboa
138 Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.131-140, mai./ago. 2005
tentativas durante o jogo foi, seguramente, maior. Mas,
a observação curiosa, no caso, é quanto à tendência
para melhorar a performance à medida que se sucedem
as experiências.
Figura 6 – Questionário sobre tabuada, primeira etapa
Em seguida realizamos um outro questionário sobre
tabuada, porém, sem limite de tempo para solução dos
problemas. Neste caso, o número de acertos foi
considerável.
Figura 7 – Questionário sobre tabuada, segunda etapa
A circunstância desta segunda etapa incluía material
didático típico da escola, como lápis, borracha, caneta e
papel, caso quisessem utilizá-los. O êxito é visível,
significativo, mais de oitenta por cento de acertos,
contra mais de oitenta por cento de erros do caso
anterior. Ou seja, há uma enorme similaridade entre a
circunstância da tabuada a ser resolvida sob pressão
temporal e a segunda versão da brincadeira Nunca Três,
assim como entre a circunstância da tabuada sem
pressão de tempo e as entrevistas sobre a brincadeira
Nunca Três. Não estamos autorizados pelos dados
colhidos a estabelecer nenhuma relação direta entre
essas situações, porém, podemos supor que, mudadas as
circunstâncias, outras são as solicitações de
inteligência. Sob pressão, como vimos em todos esses
casos, a inteligência atua de uma maneira; sem pressão
temporal, atua de outra. Chama a atenção também o
fato de que, sob pressão temporal, há maior tendência
de acertos ao longo da a brincadeira Nunca Três que
durante as questões sobre tabuada, talvez porque, no
primeiro caso, a circunstância lúdica favorecesse um
maior empenho na solução.
Quanto aos fatos estudados nesta pesquisa, Rolando
Garcia(2000, p.99), revendo a teoria piagetiana na ótica
da teoria dos sistemas complexos, escreveu o seguinte
comentário:
As ações repetidas através de múltiplos
encontros com “realidades” externas ao
organismo, não só geram os esquemas como
totalidades organizadas, senão que são, ao
mesmo tempo, organizantes enquanto esse
“algo” exterior adquire significação: se trata de
algo “chupável”, ou “agarrável” ou “mirável”. E
isto está ligado a dois processos funcionais
básicos que são a assimilação e a acomodação”3.
Servindo-nos dos comentários de Garcia para
compreender melhor os dados desta pesquisa, podemos
dizer que, de modo geral, diante do novo, o sujeito
tende a querer assimilá-lo sem qualquer esforço
adicional, esforço esse que caracteriza o que Piaget
chamou de acomodação. Claro exemplo disso ocorreu
na brincadeira aqui estudada. Na segunda versão havia
uma situação nitidamente nova comparativamente à
primeira. Chamemos a segunda versão de C, um C que
integrava B (a primeira versão), mas que possuía novos
elementos. No início da brincadeira, claramente os
sujeitos procuravam realizá-la sem submeter-se ao
esforço que ela exigia, isto é, tentavam assimilar sem a
correspondente acomodação. Isso não sendo possível,
motivados pela circunstância lúdica, submetiam-se aos
esforços de acomodação, modificavam, alteravam seus
esquemas, recorriam a possíveis anteriores diferentes,
inventavam outros, na busca do êxito, algo próximo do
que Garcia (2000, p. 102), numa passagem de seu
trabalho, afirmou:
O que transfere um sujeito em desenvolvimento
quando aplica um esquema de ação a outra
situação nova não é outra coisa que uma maneira
de coordenar suas próprias ações, e esta
coordenação deve desligar-se de seu conteúdo
primitivo para ser substituído por outro
conteúdo. O que se transfere é, por conseguinte,
uma forma pura, ou seja, forma sem conteúdo4.
Analisando essa afirmação sob o prisma de nossa
pesquisa, cremos que faltou a Garcia acrescentar que
essa transferência obedece a uma certa lei de
familiaridade. Por exemplo, transferir o esquema
utilizado na primeira versão para a segunda é possível
porque ambas são familiares uma da outra. Isso não
significa que os esquemas não podem ser transferidos a
situações muito distantes, mas é preciso que o poder de
transferência aumente com a experiência, porém,
sempre guardando e reconhecendo alguma
3 3A tradução é nossa.
9,8
90,2
12,7
87,3
17,6
82,4
19,6
80,4
21,6
78,4
83,3
16,7
0
20
40
60
80
100
Porcentage
m de
Acertos
1a 2a 3a 4a 5a 6a
Tentativas
QUESTIONÁRIO SOBRE TABUADA
Acerto
Erro
QUESTIONÁRIO SOBRE TABUADA
(Tempo para resposta: ilimitado)
83,3
16,7
0
50
100
6a
Tentativa
Porcentagem de
Acertos
Acerto
Erro
A inteligência em jogo
Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.131-140, mai./ago. 2005 139
familiaridade. Portanto, os esquemas não podem ser
transferidos a qualquer situação, e é duvidoso que essa
transferência seja pura forma destituída de conteúdo.
Seria como se, nesses casos de transferências, somente
os esquemas presentativos (formais) atuassem,
destacados dos esquemas de procedimentos (para obter
êxito). Essa partição é que parece inaceitável e distante
do que se aplicaria a uma noção geral de complexidade.
Teríamos, nesse caso, que admitir, se aceitássemos essa
idéia sem restrições, que os sujeitos, ao aplicarem na
segunda versão da brincadeira os esquemas da primeira
versão, não carregassem consigo os procedimentos, mas
somente a forma. Nitidamente, e isso é verificável
empiricamente, os procedimentos de uma versão estão
aplicados na segunda.
Pensando nisso - e não há como negar que lá
estavam na segunda versão as corridas semelhantes, as
coordenações espaciais, a iniciativa de dar a mão, as
trocas de papéis, etc. - aplicada à pedagogia, a idéia de
generalização de esquemas torna bastante alvissareira a
idéia de novas produções pedagógicas. Ou seja, diz-nos
essa idéia que não é preciso ser igualmente inteligente
para aprender; diz-nos que não é preciso padronizar
situações, comportamentos de professores e de alunos,
objetos, etc., para ter êxito na aprendizagem. Do ponto
de vista pedagógico, ainda seria bastante restritiva a
idéia de termos, de um lado, os esquemas de
procedimentos, para dar conta do imediato, do concreto
e, de outro lado, os esquemas presentativos para superálos,
extraindo deles a forma que se generalizaria.
Cremos que isso ainda não traduz a idéia de
complexidade que pretendemos dar ao conceito de
inteligência. Se apenas uma forma destituída de
conteúdo fosse o que se transferisse de uma situação à
outra, seria preciso que o esquema presentativo
realizasse sempre o mesmo esforço de reconhecimento
quanto à situação nova. Porém, sabemos que,
dependendo da situação, quanto mais familiar for aos
anteriores, mais facilmente ocorre a adaptação. Por
outro lado, é bastante duvidosa a idéia de transferência
de pura forma, sem conteúdo. Numa idéia de
complexidade, forma e conteúdo não são dessa maneira
separáveis. Quando termina a primeira versão da
brincadeira Nunca Três, as crianças iniciam a segunda
versão cometendo muitos erros. Porém, sem sombra de
dúvidas, cometem erros especialmente porque repetem
exatamente os procedimentos da versão anterior.
Transferir para a segunda versão somente o esquema
formal, o esquema presentativo não explicaria a
presença de tantos equívocos. Para nós, do ponto de
vista pedagógico, é especialmente importante verificar a
repetição dos mesmos procedimentos. Pouco a pouco,
ao sabor das experiências, certamente orientados por
uma idéia geral sobre como realizar brincadeiras de
perseguir e escapar, as crianças começam a se adaptar à
nova situação, resolvendo a contento os problemas. Os
procedimentos que não dão certo engendram novos
possíveis que, testados, pouco a pouco vão se
mostrando eficazes. O que há, parece-nos, é a
transferência de forma e conteúdo para a nova situação.
Os procedimentos sendo insuficientes, engendram
novos possíveis, que acabam levando ao êxito. E,
quanto à inteligência, o que mais importa é essa
abertura de novos possíveis produzidos no confronto
entre os esquemas anteriores e a realidade atual.
Considerações finais
Quantas vezes pessoas não são estigmatizadas por
fracassarem sistematicamente frente aos problemas
escolares ou a testes de inteligência? De maneira geral,
a inteligência dos escolares é mobilizada para um
determinado padrão de problemas. Nessa circunstância,
quem resolvê-los a contento será gratificado com
promoções. Porém, mesmo com o baixo nível de
exigência de nosso sistema escolar, o índice de fracasso
ainda é assustador.
Os mesmos alunos que, numa determinada
circunstância são incapazes (pelo menos
momentaneamente) de resolver os problemas dados, em
outras se sairiam bem. E isso, cremos, foi
suficientemente demonstrado nas atividades de nossa
pesquisa.
Qual delas, no entanto, é a que melhor responde
pela realidade da vida em sociedade, e não somente
pela vida na escola? Depende. Se for para passar nos
exames vestibulares, tudo indica que a circunstância da
entrevista, quando a mobilização da inteligência ocorre
em uma situação padrão é a mais adequada. Em outras
situações a tomada rápida de decisão, a agilidade de
gestos e pensamento são melhores, e assim por diante.
Não há uma receita única e o sistema de ensino deveria
saber disso e educar, acima de tudo, para as diversas
circunstâncias da vida.
Porém, ao final deste trabalho, uma nota de
profundo pesar. O fracasso escolar, em certas camadas
de população menos agraciadas por nosso sistema
econômico, é escandaloso. E, sem êxito escolar, as
chances de emancipação diminuem assustadoramente. É
a cidadania tão longe de tantos. É preciso, portanto,
aprender com as pesquisas a produzir uma pedagogia
que possa gratificar as diversas formas de ser
inteligente. Enquanto não muda o sistema escolar, é
necessário que a rica inteligência das crianças para
tantas coisas possa ser mobilizada também para os
problemas escolares. E que os conhecimentos
produzidos em determinadas circunstâncias possam
transitar até outras. Chamamos a atenção para este
último ponto.
J. B. Freire & A. M. Lisboa
140 Motriz, Rio Claro, v.11, n.2, p.131-140, mai./ago. 2005
Os esquemas de procedimentos, tão eficazes para
resolver os problemas surgidos na primeira versão da
brincadeira Nunca Três e a partir de um certo momento
da segunda versão, por qual motivo não poderiam
transitar até outros contextos, como o da sala de aula?
Ora, já procuramos mostrar que os construtivistas
deveriam considerar que, mudando-se as circunstâncias,
a mobilidade dos esquemas não se refere somente aos
esquemas presentativos. Sem eles não se iria muito
longe, porém, não apenas com eles. Cremos que não há
transferência apenas de forma destituída de conteúdos.
Nossa idéia, quanto à questão que mais nos interessa
aqui, que é a pedagógica, é promover transferências de
conhecimentos pouco a pouco, a partir de contextos
vizinhos, de maneira que os esquemas necessários para
dar conta dos problemas atuais, reconheçam os
anteriores. Agindo dessa maneira, e isso é assunto para
próximas pesquisas que pretendemos publicar, seria
possível, a partir dos conteúdos típicos do cotidiano de
cada criança, conduzi-la sutilmente aos conteúdos
escolares, por exemplo, e daí para outros conteúdos
típicos da vida em sociedade.
Em nosso estudo, a ênfase, ao contrário do que
comumente caracteriza os estudos sobre a inteligência
humana, não recai sobre a psicologia, mas sobre a
pedagogia. Procurar entender como as crianças
resolvem problemas semelhantes em circunstâncias
diversas remete-nos, necessariamente, para as questões
psicológicas das crianças que buscam obter êxito na
solução dos problemas encontrados, como também para
as questões epistemológicas do conhecimento
construído pelos sujeitos a partir de determinadas
experiências. Porém, acima de tudo, o interesse deste
trabalho é abrir possibilidades novas no campo da
pedagogia, considerando que nossa maior contribuição
é esclarecer os mecanismos de funcionamento da
inteligência. Ou seja, em diferentes circunstâncias,
como procuramos demonstrar aqui, há diferentes modos
de agir inteligentemente. Portanto, pedagogicamente,
sempre foi absolutamente inadequado querer padronizar
problemas e comportamentos em situações de
aprendizagem.
Referências
GARCIA, R. El conocimiento em construcción.
Barcelona: Gedisa, 2000.
GARDNER, H. Inteligências múltiplas: a teoria na
prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.
LE MOIGNE, J. Sobre a modelização da complexidade.
In: MORIN, E.; LE MOIGNE, J. A inteligência da
complexidade. 2 ed. São Paulo: Peirópolis, 2000. p.
215 – 247.
LISBOA, A. M. A inteligência em jogo: estudo sobre
a solução de problemas no contexto do jogo. 2005.
Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento
Humano) Centro de Educação Física, Fisioterapia e
Desportos, Universidade do Estado de Santa Catarina],
Florianópolis, 2005.
MORIN, E. O método III: o conhecimento do
conhecimento. Lisboa: Europa-América.
PIAGET, J. O possível e o necessário: evolução dos
possíveis na criança. Porto Alegre: Artes Médicas,
1985.
______ Comportamento: motriz da evolução. Porto:
Rés Editora, 1977.
O presente trabalho foi escrito com base na
dissertação de mestrado: A inteligência em jogo –
estudo sobre a solução de problemas no contexto do
jogo, concluída em 2005 de autoria de Adonis Marcos
Lisboa, orientado pelo Prof. João Batista Freire. Esta
dissertação foi apresentada para obtenção de grau de
mestre no Mestrado em Ciências do Movimento
Humano do CEFID – Centro de Educação Física,
Fisioterapia e Desportos da UDESC – Universidade do
Estado de Santa Catarina.
Endereço:
Rua Guilhermina Regina Deichmann, 55
Bairro Guarani
88350-520 - Brusque - SC
E-mail: adonislisboa1969@yahoo.com.br
Manuscrito recebido em 16 de maio de 2005.
Manuscrito aceito em 22 de novembro de 2005.

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